Ainda no século passado Simone de Beauvoir nos alertou: “Nunca se esqueçam que bastará uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam recolocados em questão. Esses direitos nunca são adquiridos. Vocês deverão permanecer vigilantes durante toda sua vida”. Beauvoir foi uma feminista e intelectual francesa que lutou pela conquista dos direitos das mulheres na França, cujos pensamentos foram cruciais para o feminismo contemporâneo. Quando se trata dos direitos das mulheres e, sobretudo, quando esses levantam questões religiosas e morais sabemos que é uma conquista que precisamos travar e reafirmar todos os dias, pois há sempre uma força contrária querendo nos destituir de tudo aquilo que demos nosso sangue para alcançar. A escritora francesa Annie Ernaux publicou em 2000 um livro sobre o aborto clandestino ao qual se submeteu em 1964 aos vinte e três anos, pois sabia não ter outra saída na época. Quatorze anos depois, quando interpelada sobre a publicação ela disse: “Sempre estive persuadida de que nada nunca está ganho para as mulheres”. Penso que essas duas frases se encaixam perfeitamente no momento político que estamos vivendo em nosso país.
Apesar de o aborto ser criminalizado no Brasil, em casos de risco de morte da mãe ou estupro ele é permitido e realizado pelo SUS. No entanto, ontem, quarta-feira, dia oito de novembro, em uma comissão especial, dezoito parlamentares homens, contra apenas um voto da deputada Érika Kokay (PT-DF), votaram a favor da PEC 181/2011 (após diferentes modificações) que insere na Constituição a proibição do aborto em qualquer caso, inclusive esses antes legalizados. Assim sendo, a PEC segue para o plenário onde ainda deverá ser votada em dois turnos. Foram dezoito homens deliberando sobre os corpos das mulheres, sobre uma vivência que nunca terão de enfrentar, o que eles podem saber sobre ver crescer dentro de si um filho fruto de uma violência inesquecível?
Mesmo que a decisão não seja definitiva, sabendo da situação política de nosso país, do avanço do conservadorismo, que vem justificar medidas econômicas e trabalhistas brutais, e da influência da religiosidade no debate sobre o aborto, este é um grande alerta para nós, feministas: é hora de nos mobilizarmos mais do que nunca!
O Aborto ilegal por si só já é uma forma de feminicídio de grande cunho racista e elitista exercida pelo Estado, pois ele diz: “se você é mulher e precisa abortar, é bom que tenha dinheiro e relações ou pode acabar morta numa vala”. O aborto inseguro mata, mutila, deixa sequelas físicas e psíquicas inimagináveis. E agora, se esse projeto continuar a avançar nós mulheres seremos colocadas em uma situação ainda mais violenta: se engravidarmos e for um risco para nosso corpo, o Estado nos dirá: sua vida não importa, mas tão só a do feto que carrega em sua barriga (ainda que o próprio Estado não tenha condições de prover uma boa condição de vida quando não se tratar mais de um feto, mas de uma criança que precisa de cuidados). Ou, quando uma mulher for vítima de um estupro e além de lidar com um trauma tão brutal ainda ter de ser confrontada com a ideia de carregar o filho de seu estuprador ou se submeter a um procedimento criminoso e arriscado, será o Estado legitimando uma real tortura contra nossos corpos.
Não podemos permitir esse retrocesso quando milhares de mulheres morrem anualmente devido a abortos inseguros e quando, mesmo havendo uma proibição legal, as mulheres continuam a se arriscar, abortando mesmo assim. É impossível termos total ciência do real número de abortos praticados no país, uma vez que os casos que se tornam públicos são os mal sucedidos. Assim, se formos considerar todos aqueles dos quais sequer se tem notícia é possível que a quantidade de abortos ilegais encontre o número de nascimentos. Desse modo, vemos que não se trata de uma questão de proibição da realização ou não do aborto, mas uma questão de saúde pública, como declarou Simone Veil em seu discurso de 1974 no parlamento francês. As mulheres não deixam de abortar devido à criminalização, elas apenas se submetem a procedimentos mais arriscados, sobretudo aquelas em situação periférica geográfica e/ou socialmente, as quais não podem pagar por um aborto seguro e vivem horrores por saberem não ter outra opção, já que o aborto não é uma escolha que se faz aleatoriamente, mas uma decisão que se toma por não ter outra saída.
Por isso, nós precisamos redobrar a vigilância e a força, gritando mais alto e resistindo juntas a todas as ameaças contra nossas vidas! Que nós falemos por nós mesmas e nós dizemos: Direito ao nosso corpo! Aborto legal, seguro e gratuito já!
* Por Isadora de Araújo Pontes, Militante do Coletivo Maria Maria - Marcha Mundial das Mulheres
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