Segunda-feira à noite, com a seguinte manchete “Marcela Temer: bela, recatada e do ‘do lar’” foi publicada a matéria sobre a “quase primeira-dama”, que a revista Veja logo apresenta: “43 anos mais jovem que o marido, aparece pouco, gosta de vestidos na altura dos joelhos e sonha em ter mais um filho com o vice”. Não precisamos nem ler todo o texto para saber que se trata do perfil da primeira-dama perfeita, aliás, o perfil da “mulher perfeita” pois a “mulher perfeita”, não é presidenta. Nessas poucas palavras, além de já praticamente afirmarem Temer como presidente, traçam um perfil para a “primeira-dama perfeita”, um perfil do que seria uma mulher de sucesso, e este é um perfil passivo, submisso e de mãe. Esse modelo não é novo, é o estereotipo da “mulher ideal”, da princesa da dos contos de fadas.
Esse perfil carrega a repetição de todos os comportamentos introjetados e incorporados pelas mulheres para se passar a ilusão de uma naturalidade. São os comportamentos que não são apenas determinados por nossos corpos, mas que determinam nossos corpos, estilizam-no como corpo frágil, submisso, maternal, corpo que deve ser guardado, corpo que deve ser possuído pelo agente, o marido. Um modelo apresentado sob o signo do natural, mas que não passa de um conjunto de normas que controlam nossos corpos, nossa vontade, nossa expressão.
Todos os recursos lingüísticos estão empenhados em desenhar Marcela Temer como perfeita, como aquela que se aproxima da Virgem Maria, aquela que se deixa tocar apenas pelo amor, tanto que fazem questão de frisar que Temer foi seu “primeiro namorado”. Romantizam a diferença de idade de mais de 40 anos entre eles, expondo-a de forma tão leve e sutil que quando o leitor percebe, logo é acalmado pela certeza de que ele é o amor verdadeiro dela, seu primeiro namorado e que sorte ela tem não? Segundo a revista, muita! Ela “é uma mulher de sorte” pois seu marido continua a lhe dar provas de paixão, levando para jantar em restaurantes caríssimos. E logo vemos que não há problema em gente rica jantando em restaurantes luxuosos com teto retrátil – problema eram os almoços da Presidenta. Por que? Porque a elite pode exercer seus privilégios, sair na Veja, na Caras e fazer a classe média sonhar. Sonhar não com um mundo melhor, mas com um mundo em que esse leitor também poderá fazer isso, em que basta a leitora seguir esse padrão que ela também poderá vivenciar esse amor que não se apaga.
A matéria, na verdade, não é sobre Marcela Temer, é sobre a primeira-dama ideal, que logo coloca Temer como o presidente ideal. Um presidente que fuma charutos, trabalha muito, escreve poesia, ama seus filhos e tem uma esposa linda – parece (e é!) uma descrição de um personagem de série norte-americana. A mulher ali não é apenas retratada como um indivíduo em segundo plano, ela própria é colocada como um meio, como alguém que deve permanecer no lar, no privado, enquanto o homem ocupa o público, que seria seu lugar de direito. À mulher resta apenas o lar, os filhos, não aparecer muito, não querer estar no espaço público, ser limitada, enclausurada. Nenhuma novidade nesse discurso, nenhuma surpresa a não ser o fato dele ser proferido em pelo século XXI!
E é essa mulher que querem nos fazer descer goela a baixo! Não há problema em ser uma mulher mais calada, assim como não há problema em ser um homem mais calado. Porém, a verdade é que essa mulher não existe. Essa mulher não passa de um conjunto de normas que deveríamos perseguir cegamente sem nunca alcançarmos, porque é um objetivo impossível para quem se permite desejar. E mesmo com todo esse controle que pretende nos apagar, nos fazer subservientes, ainda podemos desejar!
A resposta já está aí: nas redes sociais todas estão postando suas fotos de “bela, recatada e do lar” e são fotos de mulheres com as mais diferentes belezas, mulheres que bebem, beijam, lutam, gargalham, usam as roupas que querem! Mulheres que desejam. Mulheres de todo lugar, mulheres escandalosas, caladas, engraçadas, quietas, desbocadas, empoderadas, brilhantes, trabalhadoras, que falam alto, que falam baixo, de calça, vestido, nuas!
Não aceitaremos esse estereotipo, não aceitaremos esse modelo de mulher que nem sequer sabemos se realmente existe, por se tratar de um conjunto de características estandardizado que não define um ser humano em toda sua complexidade, que pretende ignorar as particularidades de cada mulher, cerceando nossa liberdade. Como disse Virginie Despentes:
[...] o ideal da mulher branca, sedutora sem ser puta, bem casada sem ser apagada, que trabalha sem fazer sucesso demais para não esmagar seu homem, magra sem ser neurótica por comida, indefinidamente jovem sem ser desfigurada pelos cirurgiões da estética, mamãe realizada sem ser devorada por fraldas e deveres escolares, boa dona de casa sem ser a empregadinha/escrava tradicional, culta, mas desde que o seja menos que um homem, essa mulher branca feliz que ficam nos brandindo o tempo todo, com a qual devemos nos esforçar para nos parecer, além do fato de que ela parece perder seu tempo só com coisas chatas que não levam a grande coisa, nunca a encontrei em parte alguma. Acho até que ela não existe.
Por Isadora Pontes - Militante do Coletivo Maria Maria - Marcha Mundial das mulheres
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