Humanização do parto, humanização do nascimento, parto humanizado. Por que esta questão está tão em voga no momento? E o que o feminismo tem a ver com isso?
A humanização do parto é uma das pautas de luta pelos direitos reprodutivos das mulheres e sua liberdade sexual, mas para contextualizar melhor precisamos entender o que é o movimento de humanização do parto: É um movimento que busca o respeito à fisiologia do corpo feminino, às vontades da mulher e ao cuidado com o bebê, baseado em evidências científicas e preconizado por organismos nacionais e internacionais de saúde. Neste conceito de respeito à fisiologia, podemos incluir a não-limitação de movimentos da parturiente, acesso a informações verdadeiras e científicas sobre os riscos e benefícios de cada via de nascimento (parto normal ou cesariana – uma cirurgia), a não-determinação de um tempo máximo de espera pelo nascimento baseado na vontade e disponibilidade da equipe médica, a não-submissão da mulher e do bebê a procedimentos desnecessários, entre outros. Em resumo, o movimento de humanização do parto luta pelo fim da violência obstétrica – sistemática e institucionalizada – contra a mulher e o bebê.
A violência obstétrica é apenas mais uma forma de violência diária e rotineira contra nós, mulheres, praticada por profissionais da saúde em um dos momentos mais frágeis de nossa vida, que é o momento de dar à luz. Ela é apenas mais um fruto de nossa sociedade machista e patriarcal, que infantiliza e subjuga mulheres, que rouba de nós o protagonismo de nossas vidas. Para se ter uma ideia da relação entre o patriarcado e a violência obstétrica, a posição que hoje é rotineira para o trabalho de parto hospitalar, conhecida como litotomia, onde a mulher é obrigada a ficar deitada e com as pernas amarradas ao estribo, passou a ser usada para que o Rei Luiz XIV pudesse assistir ao nascimento de seus filhos com suas amantes. Desde então, por facilitar o trabalho dos médicos e as intervenções, esta posição passou a ser cada vez mais adotada, até se tornar padrão nas maternidades do mundo todo. Uma posição antinatural, anti-fisiológica, mas além de tudo uma posição em que o protagonismo da mulher no parto é completamente apagado. Este é apenas um exemplo, no qual a violência é bastante óbvia, mas nem de longe resume o problema. Entre outras práticas de violência obstétrica podemos citar a pressão para que a gestante marque uma cesariana contra sua vontade – muitas vezes com base em falsas evidências –amedrontando a mulher, a episiotomia (corte realizado no períneo como forma de facilitar, teoricamente, a passagem do bebê), a administração de ocitocina sintética de rotina, para acelerar o trabalho de parto, mesmo em casos em que ela não é necessária, a ofensa verbal e física das parturientes, limitação de movimentos, proibição de ingestão de alimentos e água, manobra de kristeller, etc, todos procedimentos rotineiros em 90% dos hospitais brasileiros
Embora hoje em dia tenhamos muitas mulheres obstetras reproduzindo elas mesmas estas práticas violentas, até poucas décadas atrás esta era uma profissão exclusivamente masculina. Foi a medicalização do nascimento, com a saída das parteiras e a entrada dos médicos, que institucionalizou e tornou rotineira a violência obstétrica. E o que está por trás desse comportamento? De novo ela, a misoginia! O ódio à mulher e ao seu corpo, que precisa ser domado, dominado, mutilado, apagado. O ódio à sexualidade feminina, afinal, o parto nada mais é do que sexo, e é o sexo da mulher esfregado na cara da sociedade: “sim, eu transei”. É por isso que uma das frases mais ouvidas pelas parturientes em salas de hospital, durante as contrações dolorosas que as fazem gritar, é “cale a boca, na hora de fazer você não gritou” (e quem disse que não). Como nós podemos ficar alheias à dor dessas mulheres? Às suas cicatrizes físicas e emocionais? À mutilação de seus corpos e de seu aparelho reprodutivo? É simples, não podemos. Mulheres em luta, precisamos abraçar também esta causa, abraçar essas mulheres que somos todas nós, oprimidas por um sistema médico machista e antiquado, que quer dos dominar e nos calar.
É por isso que a luta pela humanização do parto deve ser a luta de cada uma de nós, mulheres, sejamos ou não mães, queiramos ou não engravidar no futuro, porque a violência obstétrica mutila e mata todos os dias, motivada por puro ódio a nós, mulheres, enquanto classe. Essa luta é de todas nós também porque visa a resgatar o que é nosso por direito, a autonomia sobre nosso corpo e nossa sexualidade, o protagonismo de nossas vidas.
*Por Irene Pontes, feminista, militante da Marcha Mundial das Mulheres - JF
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